Nessa nova postagem com um texto muito interessante de Rubem Alves (2002) trazemos um pouco de reflexão sobre o brincar, os brinquedos e o papel do professor em instigar desafios aos seus educandos.
Rubem Alves: É brincando que se aprende
O professor Pardal gostava muito do Huguinho, do
Zezinho e do Luizinho e queria fazê-los felizes. Inventou, então, brinquedos
que os fariam felizes para sempre, brinquedos que davam certo sempre: uma pipa
que voava sempre, um peão que rodava sempre e um taco de beisebol que acertava
sempre na bola. Os três patinhos ficaram felicíssimos ao receber os presentes e
se puseram logo a brincar com seus brinquedos que funcionavam sempre.
Mas a alegria durou pouco. Veio logo o enfado.
Porque não existe nada mais sem graça que um brinquedo que dá certo sempre.
Brinquedo, para ser brinquedo, tem de ser um desafio. Um brinquedo é um objeto
que, olhando para mim, me diz: "Veja se você pode comigo!". O
brinquedo me põe à prova. Testa as minhas habilidades. Qual é a graça de armar
um quebra-cabeça de 24 peças? Pode ser desafio para uma criança de 3 anos, mas
não para mim. Já um quebra-cabeça de 500 peças é um desafio. Eu quero juntar as
suas peças! Para isso, sou capaz de gastar meus olhos, meu tempo, minha
inteligência, meu sono.
Qualquer coisa pode ser um brinquedo. Não é
preciso que seja comprado em lojas. Na verdade, muitos dos brinquedos que se
vendem em lojas não são brinquedos precisamente por não oferecerem desafio
algum.
Que desafio existe numa boneca que fala quando
se aperta a sua barriga? Que desafio existe num carrinho que anda ao se apertar
um botão? Como os brinquedos do professor Pardal, eles logo perdem a graça. Mas
um cabo de vassoura vira um brinquedo se ele faz um desafio: "Vamos,
equilibre-me em sua testa!". Quando era menino, eu e meus amigos fazíamos
competições para saber quem era capaz de equilibrar um cabo de vassoura na
testa por mais tempo. O mesmo acontece com uma corda no momento em que ela
deixa de ser coisa para se amarrar e passa a ser coisa de se pular.
Laranjas podem ser brinquedos? Meu pai era um
mestre em descascar laranjas sem arrebentar a casca e sem ferir a fruta. Para o
meu pai, a laranja e o canivete eram brinquedos. Eu olhava para ele e tinha
inveja. Assim, tratei de aprender. E ainda hoje, quando vou descascar uma
laranja, ela vira brinquedo nas minhas mãos ao me desafiar: "Vamos ver se
você é capaz de tirar a minha casca sem me ferir e sem deixar que ela
arrebente".
Para um alpinista, o Aconcágua é um brinquedo: é
um desafio a ser vencido. Mas um morrinho baixo não é brinquedo porque é muito
fácil —não é desafio. Ao escalar o Aconcágua, ele está medindo forças com a
montanha ameaçadora! Pelo desafio dos picos, os alpinistas arriscam as suas
vidas, e muitos morrem. Parodiando o Riobaldo: "Brincar é muito
perigoso...".
Há brinquedos que são desafios ao seu corpo, à
sua força, à sua habilidade, à sua paciência. E há brinquedos que são desafios
à inteligência. A inteligência gosta de brincar. Brincando, ela salta e fica
mais inteligente ainda. Brinquedo é tônico para a inteligência. Mas se ela tem
de fazer coisas que não são desafio, ela fica preguiçosa e emburrecida.
Todo conhecimento científico começa com um
desafio: um enigma a ser decifrado! A natureza desafia: "Veja se você me
decifra!". E aí os olhos e a inteligência do cientista se põem a trabalhar
para decifrar o enigma. Assim aconteceu com Johannes Kepler (1571-1630), cuja
inteligência brincava com o movimento dos planetas. Assim aconteceu com Galileu
Galilei (1564-1642), que, ao observar a natureza, tinha a suspeita de que ela
falava uma linguagem que ele não entendia. Pôs-se, então, a observar e a pensar
(ciência se faz com essas duas coisas, olho e cérebro!) até que decifrou o
enigma: a natureza fala a linguagem da matemática! E até hoje os cientistas
continuam a brincar o mesmo brinquedo descoberto por Galileu.
Aconteceu assim também com um monge chamado
Gregor Johann Mendel (1882-1962). No seu mosteiro havia uma horta onde cresciam
ervilhas. Os outros monges, vendo as ervilhas, pensavam em sopa. Mas Mendel
percebeu que elas escondiam um segredo. E ele tanto fez que acabou por
descobrir o segredo que nos revelou o incrível mundo da genética. E não é esse
mesmo jogo que faz a criança que está começando a aprender a ler? Ela olha para
as letras-ervilhas e tenta decifrar a palavra que elas formam. Tudo é
brinquedo!
Congressos de educação: a gente pensa logo em
professores, psicólogos, "papers" científicos, filósofos... Estive em
um, na Itália, diferente, em que havia muitas crianças. E havia uma oficina em
que um "mestre" ensinava às crianças a arte de fazer brinquedos. Um
deles era um par de pregos grandes, tortos, entrelaçados, que, se a gente fosse
inteligente, conseguia separar. Gastei uns bons dez minutos lutando com os
pregos, absorvido, inutilmente. De repente me perguntei: "Por que estou
assim, gastando o meu tempo com um par de pregos?".
Eu lutava com os pregos pelo desafio. Eu queria
provar que eu podia com eles. Repentinamente, percebi que a primeira tarefa do
professor é, à semelhança dos pregos, entortar a sua "disciplina" (ô,
palavra feia, imprópria para uma escola!) e transformá-la num brinquedo que
desafie a inteligência do aluno. Pois não é isso que são a matemática, a
física, a química, a biologia, a história, o português? Brinquedos, desafios à
inteligência. Mas, para isso, é claro, é preciso que o professor saiba brincar
e tenha uma cara de criança, ao ensinar. Porque cara feia não combina com
brinquedo...